Participantes de um webinário na última sexta-feira (18) usaram termos como tortura, desrespeito a direitos sexuais e reprodutivos e tutela sobre corpos que têm útero para se referir à portaria 2.282/20 do Ministério da Saúde, que trata dos procedimentos para os casos em que o aborto é permitido no Brasil (estupro, risco de vida para a gestante e feto anencéfalo).
O debate foi promovido pela Frente Parlamentar com Participação Popular Feminista e Antirracista.
O que diz a portaria
O texto publicado pelo Ministério da Saúde determina que, na fase de exames, a equipe médica informe a vítima de violência sexual sobre a possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia. Caso a pessoa gestante deseje ver o feto, deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada.
A portaria também obriga os profissionais de saúde a preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro, como fragmentos de embrião ou feto. As evidências deverão ser entregues imediatamente à autoridade policial, para possíveis confrontos de DNA que possam levar à identificação do autor do crime.
Além disso, a portaria reforça a obrigatoriedade de notificação à autoridade policial de indícios de violência sexual sofrida pela vítima, prevista na lei 13.931/19.
Constitucionalidade questionada
Para a coordenadora do Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher, Sandra Lia Bazzo Barwinski, o Ministério da Saúde extrapolou seu poder regulamentar com a portaria, que tem sua constitucionalidade questionada. Ela também defende que a norma reflete uma sociedade machista.
“Impõe medida discriminatória, partindo de concepções sexistas e estereotipadas que consideram a mulher um ser subordinado e sem capacidade de autodeterminação, mentirosa. Tem por resultado a discriminação das mulheres, ainda que não tenha sido editada com essa intenção ou mesmo que tivesse por objetivo proteger os direitos das mulheres. Produz resultados que desprezam ou anulam o efetivo exercício dos direitos humanos das mulheres”, acredita.
Interferência da religião
Para a deputada Talíria Petrone (Psol-RJ), coordenadora da frente parlamentar, a portaria está ligada a um momento de fragilização da democracia.
“É importante inserir essa portaria numa conjuntura grave que a gente está vivendo no Brasil. O avanço do fundamentalismo — e não estou falando da religião, não estou falando do cristianismo, não estou falando dos evangélicos, estou falando do fundamentalismo religioso, que fere o estado laico — é parte de uma cada vez maior fragilização da democracia brasileira e não dá pra tirar essa portaria desse contexto.”
Simony dos Anjos, do Coletivo Evangélicas pela Igualdade de Gênero, também relaciona a mudança nas normas a um avanço de uma moralidade de cunho religioso.
“Eu colocaria que o compulsório reforça a ideia de incompletude da mulher, de tutela. E tanto a tutela quanto a incompletude, ambos têm lastro cristão importante. Moralidade cristã que influencia as leis e o Estado brasileiro, desde quando Pero Vaz de Caminha disse, em sua carta, que tinha que salvar os indígenas.”
Um consenso entre os participantes do webinário foi de que a portaria do Ministério da Saúde é inegociável: é preciso derrubá-la. Nesse sentido, os participantes defenderam que a Câmara aprove propostas (PDL 381/20 e outros) que sustam os efeitos da portaria.
Polêmica
Mas o tema é polêmico, e as propostas de revogar a decisão do Ministério da Saúde devem sofrer bastante resistência. A deputada Chris Tonietto (PSL-RJ), por exemplo, afirma que a questão não tem a ver com religião, e que a portaria traz apenas uma possibilidade às vítimas de estupro que engravidarem como resultado da agressão.
“O simples fato de um médico ter o dever de informar à gestante sobre a possibilidade de acesso à ultrassonografia, não é uma obrigatoriedade, temos apenas um dever de informação, em que é facultado à gestante esse acesso”, rebate. Ela afirma que a questão não é “meramente religiosa” e que essa seria uma tentativa de inviabilizar ou desqualificar o debate. “Tentam mostrar ‘ah, não, isso é uma questão religiosa’. Isso não é uma questão religiosa, é de direito natural, defesa da vida que começa na concepção, sim”, defende.
Para Tonietto, a portaria tem como objetivo garantir punição aos estupradores, e não torturar ou tutelar as vítimas.
Agência Câmara de Notícias.
Imagem: TV Câmara Federal.
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