Quando subir a rampa do Palácio do Planalto, em 1º de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro se tornará o terceiro militar a ganhar a Presidência da República nas urnas. Antes de Bolsonaro, que é capitão reformado do Exército, os militares que governaram o país escolhidos pelo voto popular foram Hermes da Fonseca (1910-1914) e Eurico Gaspar Dutra (1946-1950).
Outros sete militares foram presidentes do Brasil, mas não foi pela via democrática que chegaram ao poder.
Os presidentes do passado, apesar de separados por três décadas, tinham bastante em comum. Hermes e Dutra estavam no topo da hierarquia militar, eram idolatrados dentro da caserna, ocupavam postos do alto escalão do governo federal e se lançaram na disputa pelo Palácio do Catete como candidatos do establishment.
Hermes era marechal (o degrau mais alto do Exército) e fora ministro da Guerra do presidente Affonso Penna. Dutra ocupava o posto de general (a promoção a marechal viria durante o mandato presidencial) e também comandara o Ministério da Guerra, no governo ditatorial de Getúlio Vargas.
Como titulares do Ministério da Guerra (equivalente hoje ao Ministério da Defesa), Hermes e Dutra executaram uma série de medidas que modernizaram as Forças Armadas, o que lhes rendeu o apoio maciço das tropas.
Os dois venceram a eleição presidencial sem grande esforço. Hermes foi o candidato oficial das oligarquias estaduais, que manipulavam a seu favor o resultado das urnas da República Velha. Na época de Dutra, as votações já não sofriam tanta fraude. O que contou, no caso dele, foi o valioso apoio público que recebeu do sempre popular Getúlio Vargas.
Hermes e Dutra também tinham suas diferenças. No Brasil de 1910, ser candidato militar era um problema. Em 1945, um trunfo.
Quem enfrentou o marechal Hermes da Fonseca nas urnas foi o senador Ruy Barbosa (BA). De acordo com documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, Ruy fez vários discursos em que atacou o adversário citando justamente a sua origem militar.
— As nações, senhores, não armam os seus Exércitos para serem escravizadas por eles. As nações não fazem os seus marechais para que eles venham a ser na paz os caudilhos de facções ambiciosas — bradou Ruy num desses discursos.
Ele argumentava que os militares eram incompatíveis com o poder. Na visão de Ruy, qualquer fardado que chegasse à Presidência transformaria o Brasil numa ditadura, tal qual haviam feito os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto duas décadas antes, nos primórdios da República. Hermes, por sinal, era sobrinho de Deodoro.
Para os aliados de Hermes, o Brasil não deveria se assustar com a farda do marechal.
— Tenho certeza que, subindo ao poder, o marechal Hermes da Fonseca fará um governo eminentemente civil, sem que as classes militares se proponham a superpor-se ao elemento civil, porque este é o compromisso assumido por Sua Excelência perante o país, e eu reputo Sua Excelência um homem honesto, um homem de honra, além de que na sociedade já vai passando a fase guerreira — argumentou o senador Cassiano do Nascimento (RS).
Para marcar o antagonismo em relação ao presidenciável militar, Ruy Barbosa batizou sua candidatura de Campanha Civilista. O chefe da nação, para ele, tinha necessariamente que ser civil. Sem o suporte das elites políticas estaduais, contudo, a Campanha Civilista naufragou.
Na campanha do general Dutra, ao contrário, a patente militar não serviu de arma para os adversários. Até porque o principal oponente também era um fardado, oriundo da Aeronáutica: o brigadeiro Eduardo Gomes. O consultor legislativo do Senado Fernando Trindade, que tem formação em história, explica:
— O general Dutra governou logo depois que a 2ª Guerra Mundial acabou e no momento em que a Guerra Fria se iniciou. Nesse contexto belicoso, era natural que um militar assumisse o poder. Isso ocorreu não só no Brasil, mas em vários países. Tivemos Churchill no Reino Unido, Perón na Argentina, Eisenhower nos Estados Unidos, De Gaulle na França.
No Brasil, nomes militares apareceriam em todas as cédulas eleitorais até o golpe de 1964. Em 1950, Getúlio Vargas derrotou o brigadeiro Eduardo Gomes, novamente candidato. Em 1955, Juscelino Kubitschek venceu o general Juarez Távora. Em 1960, Jânio Quadros bateu o marechal Henrique Lott.
O general Dutra tomou posse trajando farda, mas prometeu que não faria um governo militar e que seria “o presidente de todos os brasileiros”. A promessa foi cumprida. Ele permitiu que a Assembleia Nacional Constituinte elaborasse a nova Constituição com total liberdade. Não reagiu sequer quando os constituintes reduziram o mandato presidencial de seis para cinco anos.
— A história há de apresentar o presidente Eurico Dutra como o verdadeiro restaurador da democracia do Brasil — discursou o senador Novaes Filho (PSD-PE). — Depois do longo período de exceção em que vivemos [a ditadura do Estado Novo], Sua Excelência aí está altaneiro, discreto e modesto, sem procurar popularidade barata, preocupado somente em cumprir o seu dever.
— O senhor presidente conhece perfeitamente suas atribuições e diz, proclama, grita e tem demonstrado com a eloquência dos exemplos que jamais sairá do seu “livrinho vermelho”, que é a Constituição do Brasil, votada pelo povo brasileiro — acrescentou o colega Olavo Oliveira (PSP-CE), segundo documentos do Arquivo do Senado.
Uma das raras medidas de Dutra consideradas hoje antidemocráticas foi o respaldo à decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de fechar o Partido Comunista do Brasil (PCB) e destituir os parlamentares “vermelhos”, como o senador Luís Carlos Prestes (PCB-DF) e os deputados Jorge Amado (PCB-SP) e Carlos Marighella (PCB-BA).
Enquanto o general Dutra encerrou seu mandato com a popularidade nas alturas, sendo por muito tempo lembrado como exemplo de ética e honestidade, o marechal Hermes saiu execrado do Catete. Seu governo foi marcado por um truculento estado de sítio, pela execução dos rebeldes da Revolta da Chibata e pela intervenção federal em diversos estados, com a derrubada de governadores e o bombardeio de Salvador.
No âmbito familiar, uma infeliz coincidência aproxima Hermes e Dutra. Ambos ficaram viúvos durante o mandato presidencial. A mulher do marechal, Orsina da Fonseca, morreu em 1912. No dia seguinte, o senador Nilo Peçanha (RJ) propôs ao Senado que criasse uma comissão de parlamentares para levar um abraço de condolências ao presidente.
— Penso que o Senado não é insensível ao desgosto por que acaba de passar o chefe da nação pela perda irreparável de sua estremecida esposa, modelo de virtude e de bondade — afirmou Nilo, que obteve a aprovação de sua proposta por unanimidade.
Hermes ficaria sozinho por pouco tempo. Em 1913, ele se casou com a caricaturista Nair de Teffé, que escandalizava a sociedade carioca por vestir calças compridas e organizar saraus com maxixe, estilo de música e de dança considerado vulgar na época.
A mulher do general, Carmela Dutra, morreu em 1947. Por ser católica radical, ela tinha o apelido de Dona Santinha. Atribui-se à pressão dela a decisão do presidente de, por decreto, colocar na ilegalidade os cassinos e os jogos de azar.
— O infausto acontecimento privou a sociedade brasileira de um dos seus mais altos e nobres ornamentos. Dona Carmela Dutra, um expoente da personalidade feminina no Brasil, enobreceu a sociedade pela inteligência, pela virtude e pela força militante da sua profunda fé religiosa — discursou o senador Georgino Avelino (PSD-RN).
O Brasil também teve militares que viraram presidentes sem passar pelo crivo popular. Foram sete, que chegaram ao poder depois de golpes de Estado. Os primeiros foram Deodoro e Floriano, protagonistas da derrubada da Monarquia, em 1889. Depois deles, vieram os generais da ditadura iniciada em 1964: Humberto Castello Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo.
O historiador e militar reformado Sergio Murillo Pinto, autor do livro Exército e Política no Brasil (Editora FGV), afirma:
— Os militares, em mais de uma ocasião, entraram na cena política atropelando a Constituição. Hermes e Dutra mostram que houve exceções. Hermes fez um governo desastroso, mas Dutra garantiu a volta do país à normalidade democrática. Para a democracia, o importante é que o presidente e o governo não sejam tutelados pelos militares e que a Constituição seja sempre respeitada.
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