A segunda parte dos expositores que participaram nesta segunda-feira da audiência pública convocada pela ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, foi composta de representantes do setor audiovisual. Cineastas, roteiristas, produtores e atores manifestaram sua preocupação com as mudanças introduzidas pelo Decreto 9.919/2019 da Presidência da República na estrutura do Conselho Superior do Cinema (CSC), e pela Portaria 1.576/2019 do Ministério da Cidadania, que promoveram alterações na destinação de verbas para a produção cinematográfica nacional.
Papel do Estado
Para o cineasta Augusto Sevá, integrante da equipe que formulou o projeto de criação da Agência Nacional de Cinema (Ancine), é preciso diferenciar o que é do Estado, do governo ou da sociedade. As propostas de mudança, segundo ele, devem ser examinadas, mas visando, sobretudo, a um modelo mais duradouro para o futuro.
Renato Barbieri, cineasta e membro do Conselho Superior de Cinema, destacou a facilidade de comunicação do brasileiro com outros povos, em razão da raiz multiétnica, e a necessidade de exercitar o convívio com as diferenças religiosas, raciais, culturais, políticas e geográficas. “A indústria audiovisual brasileira precisa continuar sua trajetória plural de crescimento e fortalecimento”, defendeu.
Para o presidente da Associação Brasileira de Cineastas (Abraci/RJ), Daniel Caetano, o Estado deve garantir a produção dos objetos artísticos sem censura prévia – que pode se configurar, entre outras formas, com a limitação de acesso a recursos. Ele ressaltou a necessidade de democratizar esse acesso para garantir a variedade da produção cinematográfica de forma estruturada e criticou o fato de o CSC não ter produtores independentes em sua nova composição.
O cineasta Luiz Carlos Barreto afirmou que o retorno do conselho à Casa Civil atende ao pleito das principais entidades da classe cinematográfica, mas destacou que a suspensão, pelo Ministério da Cidadania, do edital para produção audiovisual de materiais sobre diversidade de gênero e sexualidade é inconstitucional. Segundo ele, o edital só poderia ser suspenso diante de algum tipo de fraude em sua edição – o que, em seu entendimento, não foi demonstrado.
Censura
Carolina Kotscho, presidente da Associação Brasileira de Autores Roteiristas (Abra), questionou a possibilidade de o poder público, por meio de censura, filtro ou curadoria, limitar, direcionar ou restringir a liberdade de criação e de pensamento de artistas, intelectuais, professores, jornalistas e cientistas. “A arte não está a serviço de uma ou outra ideologia, não atende partidos, não admite fronteiras”, sustentou. “Ela é resultado e condição de nossa vida em sociedade, marco da civilização e a tradução mais precisa da identidade de um povo de seu espaço e seu tempo”.
O ator e diretor Caco Ciocler ressaltou a importância da discussão do tema no STF e afirmou que o setor está “sentindo a censura na pele”, ainda que de forma não institucionalizada. Segundo ele, a perspectiva de alinhamento da produção audiovisual a um tipo de pensamento é extremamente preocupante. “Em todos os exemplos da história, sempre que um governo enxerga a cultura como uma maneira de propaganda de ideias que lhes fossem caras, os desfechos são sempre trágicos”, assinalou.
A mesma preocupação foi manifestada pela atriz e produtora Dira Paes. “Somos um mercado que deve ser respeitado, e nossos representantes, dentro das Secretarias culturais, não podem ser os nossos antagonistas”, afirmou. “Vamos ‘emburrecer’ se tivermos de vir a este Plenário defender o óbvio”.
Para o cantor e compositor Caetano Veloso, a censura, apesar de seu “aspecto ridículo”, traz grande amargura ao artista. “A expressão artística de roteiristas, autores, escritores, poetas, cantores, atores, atrizes e desenhistas brasileiros é brutal. Essa potência não pode ser castrada”, disse. O cantor frisou, no entanto, que, mais do que o direito à liberdade de expressão do artista, a censura afeta o direito do espectador. “É mais sobre o direito de escutar do que sobre o direito de dizer”, concluiu. Citando o texto de um amigo, Caetano disse que o atual governo, apesar de afirmar que o artista tem liberdade para criar, se reserva ao direito de não financiar artistas e temáticas que estejam em desacordo com o seu projeto – o que, para ele, representa “a própria essência da censura”.
Paralisia
Presidente da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) afirmou que o órgão tem registrado preocupação com ameaças de retorno da censura no país e seus impactos na liberdade de expressão e na produção cultural. “A comissão acompanha com perplexidade os fatos recentes em discussão nessa ADPF”, afirmou. “Na área de cultura, o governo vem se mostrando cada vez mais rígido e autoritário, com a paralisação de todas as políticas públicas para o setor cultural”.
Segundo o ator Caio Blat, as minorias estão sendo excluídas dos editais, o que representa a volta da censura e resulta na paralisia do setor audiovisual. “Esta ação que está sendo discutida aqui é muito importante, porque serve como sinalização para todas essas formas disfarçadas de censura que estão acontecendo, e clamamos ao Supremo que dê uma sinalização de que isso não vai passar nas últimas instâncias da Justiça”, disse.
O ator e diretor Johnny Massaro afirmou que as artes têm papel fundamental na construção da personalidade individual e da nação. Para ele, o decreto presidencial questionado na ADPF “desconsidera milhões de brasileiros baseando-se no que o governo considera normal e freia uma potente indústria que está em ascensão no país”.
Segundo a diretora, atriz e apresentadora Marina Person, as cerca de nove mil produtoras de audiovisual existentes no Brasil dependem do pleno funcionamento da Ancine para existir. “A Ancine está asfixiada, de mãos atadas, engessada. Esse engessamento é um mecanismo indireto de censura”, ressaltou.
O ator, humorista e escritor Gregório Duvivier defendeu que a função da TV pública é garantir o direito do artista de produzir e da população de assistir à cultura em todas suas manifestações e que os editais existem para garantir que, em algum lugar no país, “a arte será produzida com total liberdade, sem critérios comerciais ou morais, mas puramente artísticos”.
ASCOM – STF.
Imagem: Rosinei Coutinho.
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