A equipe de transição de governo denunciou, nesta quinta-feira (1º), que encontrou indícios de abuso de poder econômico e político por parte do governo Bolsonaro na gestão do Auxílio Brasil. O grupo disse que vai procurar os órgãos competentes para formalizar uma denúncia por ter localizado um salto “estranho” no número de beneficiários do programa às vésperas da eleição de outubro deste ano. O anúncio foi feito em coletiva de imprensa do Grupo Técnico (GT) do Desenvolvimento Social e Combate à Fome que atua na transição.
Ao expor os problemas encontrados nas políticas do Ministério da Cidadania, a economista e ex-ministra Tereza Campello exibiu um slide em que menciona o que chamou de “estranho crescimento dos beneficiários do Auxílio Brasil” que trouxe uma comparação entre números levantados pela equipe.
Segundo a ex-gestora, em dezembro de 2018, um mês antes de Bolsonaro assumir a presidência, havia 1,8 milhão de beneficiários cadastrados como “unipessoais”, ou seja, registrados de forma individual e por CPF. Esse dado se manteve constante durante o histórico de 18 anos do Bolsa Família até o final do ano passado, quando começou a sofrer algumas elevações, até que o montante saltou bruscamente para 5,5 milhões em outubro deste ano, registrando um aumento de 197%. Enquanto isso, no mesmo período, o número de famílias cadastradas com duas pessoas ou mais foi ampliado em 21%.
“O relatório e a fala do governo Bolsonaro foram de que gradativamente vem aumentando, mas não foi gradativamente. Essas pessoas se comportavam de uma determinada forma, e aí repentinamente, vejam o salto que deram em um mês. Um milhão de pessoas se cadastraram em um mês, mudando completamente o perfil que nós tínhamos. Isso aconteceu por quê? Por isso que eu estou chamando atenção”, realçou a ex-ministra, ao observar que o salto repentino se deu nas vésperas da eleição.
“As pessoas estão tratando como se o beneficiário tivesse feito alguma coisa errada. Isso daqui é resultado de uma ação mal organizada, mal desenhada, mal divulgada, que orientou mal os beneficiários. Por que o governo não viu isso? Esse dado é público. Qualquer sistema de controle – que deve funcionar no ministério, esperamos – poderia ter identificado isso imediatamente e exigiria que já em dezembro o governo tivesse tomado alguma atitude. Não tomou. Pior, o processo continua”, emendou.
Ainda segundo Tereza, além de gerar benefícios em duplicidade, erros de exclusão “gigantescos” e outras questões, o problema prejudicou também usuários de programas implementados por estados e municípios que se baseiam na plataforma de dados do Cadastro Único, utilizado como referência nacional para políticas de assistência social. “Nós achamos que, para além da incompetência, do desgoverno, do completo descaso com as políticas públicas, este governo também agiu com má-fé”, afirmou.
Diante do quadro, o GT disse que vê “fortes indícios” de abuso de poder econômico e político praticados pela gestão Bolsonaro no Ministério da Cidadania. A equipe informou que trabalha na produção de uma nota técnica que irá “formalizar os achados” e que a denúncia será encaminhada aos órgãos de controle para que seja devidamente apurada.
Orçamento
Outro problema identificado pelo GT remete à questão orçamentária. A senadora Simone Tebet (MDB-MS), integrante da equipe, disse que Bolsonaro deixou a pasta com uma previsão de verbas 96% menor para 2023.
“Ministério da Cidadania hoje é apenas cidadania no nome, mas, de fato, cidadania passou foi longe porque cidadania significa cumprir aquilo que a Constituição determina. É o direito do cidadão de ter alimento, mas não apenas alimento. É ter direito a emprego e renda, e hoje praticamente todo o orçamento do ministério está voltado para o Auxílio Brasil e o auxílio-gás. Todas as políticas públicas relacionadas a emprego, renda, qualificação, inclusão produtiva, etc. ficaram em segundo plano”, disse a parlamentar, ao citar falta de verbas e “falta total de vontade política do governo”.
Ela disse que a pasta precisaria, por exemplo, de R$ 70 bilhões de recursos extras para manter os R$ 600 do Bolsa Família e para conceder mais R$ 150 por criança de até 6 anos, assim como precisaria de R$ 2 bilhões para o auxílio-gás e de mais 2,6 bilhões para o Sistema Único de Assistência Social (Suas). Há também carência de recursos para outras políticas de relevância, como é o caso da construção de cisternas e de distribuição de alimentos.
“Desmontes”
Tereza Campello disse que as verbas deixadas pelo governo Bolsonaro para a área de assistência social em 2023 dariam apenas para dez dias de operação.
“Para além a questão do dinheiro, tem um conjunto de desmontes que aconteceram e tem um conjunto de alertas importantes. A lista é extensa”, resumiu Campello, ao se referir aos problemas trazidos à tona. A ex-ministra e outros integrantes destacaram, por exemplo, o pagamento de benefícios em duplicidade, erros de exclusão de beneficiários dos programas, “deturpação do Cadastro Único”, ampliação das filas dos Centros de Referência e Assistência Social (CRAS), defasagem na central de atendimento dos programas e ausência de apoio e orientação às famílias por conta de uma “desarticulação federativa”.
Já a ex-ministra do Desenvolvimento Social Márcia Lopes, também integrante do GT, destacou que atualmente há quase 40 milhões de famílias no Cadastro Único, o que leva a um montante de cerca de 100 milhões de pessoas que demandam proteção social. “E, a partir do atual governo, nenhum serviço mais foi ampliado. Ao contrário, o que temos visto é um fechamento de serviços. Temos uma situação de terra arrasada, um cenário de muita fome. Há 125 milhões em situação de insegurança alimentar”, disse, ao mencionar ainda “uma situação de absoluta calamidade e desespero”.
O grupo trabalha há 16 dias na produção de um relatório que registra e formata dados a respeito da situação atual do ministério para que o diagnóstico sirva de ponto de partida para o planejamento das ações da gestão Lula (PT) na área. Campello ressaltou a preocupação com o crescimento exponencial no número de “beneficiários unipessoais”.
A ex-gestora indicou que a mudança tem relação com a obrigatoriedade imposta pelo atual governo de registro por meio do CPF. O problema, segundo ela, começa no pré-cadastro feito via aplicativo, que puxa os dados dos usuários pelo CPF e encaminha a população para um registro individual da demanda.
“Nossa avaliação, depois de olhar os dados, é de que a população foi induzida a se cadastrar dessa forma. Portanto, não é um malfeito da pessoa pobre, mas um malfeito do Estado, do governo do presidente Bolsonaro. A má gestão e a incompetência levaram a distorções e ao desperdício, e não um pretenso comportamento da população, que quis se aproveitar pra isso.
A ex-ministra disse que a política de transferência de renda passou por oito mudanças profundas nos últimos três anos, o que contribuiu para os problemas mencionados. “Isso gera um nível de desorganização das políticas públicas e de confusão para os beneficiários. Foram oito mudanças profundas, e não de detalhes”, frisou.
A desarticulação federativa, segundo a equipe, gerou também uma desinformação dos próprios técnicos que atuam na cadeia de atendimento à população. “Por que o Bolsa Família funcionou durante 18 anos tão bem e virou uma referência? Exatamente porque ele organizava esse conjunto de atores via pacto federativo e via Suas [Sistema Único de Assistência Social]”, disse Tereza, ao acrescentar que atualmente a capacidade da central de atendimento do ministério não chega a 10% da demanda recebida via ligações.
Reportagem de Cristiane Sampaio, da Brasil de Fato.
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