A ausência de uma base de dados sólida, o baixo investimento público e a falta de uma rede de prevenção e apoio integrada estão entre os principais fatores que têm impedido a efetividade da Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, de acordo com parlamentares, especialistas e gestores que participaram de audiência pública nesta quinta-feira (29). O debate, promovido pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS), teve como objetivo avaliar a saúde mental dos brasileiros e a capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS) para atender ao aumento da demanda por esse serviço a partir da aplicação da Lei 13.819, de 2019, que criou o marco legal. 

Autor do requerimento para promoção da audiência, o senador Eduardo Girão (Novo-CE) — que também foi relator do projeto que originou a política pública (PL 1.902/2019) — manifestou preocupação com os constantes casos divulgados pelo noticiário e relatados por pais e mães com a exposição de crianças e adolescentes a ambientes de risco, como as plataformas digitais. Nesse ambiente, de acordo com o senador e outros participantes do debate, criminosos têm atuado para estimular a automutilação, o suicídio e outros tipos de crime. 

Além de defender o aprimoramento e a frequente avaliação das medidas de prevenção pelo Congresso Nacional, o senador lamentou o fato de que, na sua opinião, o atual governo não tenha dado a atenção necessária ao tema. 

— Eu fico muito preocupado com as políticas, com todo o respeito, do atual governo. Com relação, por exemplo, à Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred), que foi uma conquista no tratamento de dependentes químicos, que tem a ver com o estudo. Qual é a política real do governo em relação a isso. Por que uma das primeiras medidas foi esvaziar a Secretaria Nacional de Prevenção às Drogas? Onde ficarão 80 mil pessoas que são atendidas por essas comunidades terapêuticas? Essas pessoas vão voltar para as ruas? Tudo isso gera um impacto grande na sociedade brasileira, nas famílias — questionou o senador.

Para o deputado Osmar Terra (MDB-RS), autor do projeto que deu origem à lei, um dos desafios para melhorar a aplicação da norma é a construção de uma base de dados sólida sobre o tema para entender a realidade de cada local. Para ele, a efetividade das ações no âmbito da saúde, principalmente na prevenção e atenção aos transtornos mentais, deve passar pelo cuidado desde a infância e a valorização dos profissionais de saúde por meio do SUS, aliado a uma política pública de combate ao consumo e tráfico de drogas.   

Ele apresentou um mapeamento sobre suicídio no Rio Grande do Sul, estado que, de acordo com o parlamentar, apresenta o dobro de suicídio em relação à média do país. Na sua visão, isso comprova que a motivação para esse tipo de morte vai além das questões sociais e de segurança, já que muitas das cidades pesquisadas estão entre as mais ricas do Brasil. O que reforça, de acordo com ele, que a política deve ser executada de forma multifatorial. 

— Hoje se tem uma ideia de que tudo é social, como se as pessoas não tivessem doença, não tivessem transtornos. Elas são frutos da sociedade. Mas justamente nas cidades mais ricas do Rio Grande do Sul é que tem mais suicídio. Do interior do Rio Grande do Sul. Então não tem essa relação só com o social, tem uma relação com os transtornos mentais também. 

Recursos

Por outro lado, os especialistas que participaram do debate foram unânimes em afirmar que é impossível implementar uma política nacional de enfrentamento a esse problema sem investimento correspondente na área de saúde mental e sem constituir uma rede de atenção integrada. O psiquiatra e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) Fábio Gomes de Matos ressaltou que atualmente somente 1,8% do orçamento da saúde é destinado à saúde mental. Já a psiquiatra e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB) Helena Moura apresentou dados do DataSUS que indicam que 77% da população brasileira não tem acesso a esse tipo de serviço. 

Eles destacaram que o suicídio está inserido dentro de uma “cascata de acontecimentos” que pode envolver adoecimento mental com fatores que ampliam os riscos individuais, mas também pode estar relacionada a fatores, como a falta de coesão social, que ficam ainda mais reforçados em situações de crises ligadas a questões ambientais, sanitárias e sociais, como foi o caso da pandemia de covid-19. Apesar de, segundo dados do próprio DataSUS, o número de suicídios no país não ter aumentado, no período pandêmico ele passou a ser mais frequente entre as pessoas mais vulneráveis, relatou a pesquisadora Helena Moura. 

— Se for olhar de um modo geral, a quantidade de suicídios de março a dezembro de 2020 não mudou, permaneceu a mesma, em torno de 11.300 pessoas. Porém essa estabilidade se manteve às custas de variações em determinadas camadas demográficas. Enquanto no Sul permaneceu relativamente estável (que já é alta em relação ao restante do Brasil, é um estado que já está mais preparado para atender essa demanda), no Norte houve mais variação, com aumento da taxa de suicídio. De um modo geral, o que a gente observa? Houve um aumento do suicídio entre as pessoas não brancas, mulheres e idosas, e essa variação foi ainda mais intensa nas regiões mais vulneráveis, onde há mais disparidades socioeconômicas no Brasil — concluiu Helena Moura. 

Transversalidade 

A prevenção e a atenção à saúde mental devem, conforme os participantes, contar com ações como integração do prontuário do usuário, aumento no número de ambulatórios especializados em saúde mental, aumento de leitos de saúde mental em hospitais gerais, constante capacitação profissional de profissionais do SUS e também da educação e trabalhar para constituição de uma “Rede da Vida” integrada, com um sistema de saúde que se comunique e ofereça ao usuário, inclusive, lares de apoio. Além disso, para eles, o plano deve estar aliado a uma política de segurança que trabalhe para restringir o acesso a armas de fogo, a medicamentos de uso restrito e produtos tóxicos que vão de drogas e álcool até fertilizantes. 

Na visão da professora e fundadora do curso de psicologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Alessandra Xavier, a rede intersetorial deve entender o contexto contemporâneo pós-pandemia, principalmente o impacto do luto, da crise econômica, o advento das novas tecnologias e as formas de relações pessoais e profissionais que avançaram em razão delas. 

— Precisamos de intervenções na primeira infância, ações de saúde mental que acompanhem os processos de desenvolvimento. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 50% dos transtornos mentais começam aos 14 anos de idade. Onde estão as políticas públicas para os jovens, órfãos de covid, crianças e adolescentes em situação de violência doméstica, violência sexual, em ambientes dominados por facções? Quais as políticas de suporte familiar que envolvam saúde mental, pré-natal psicológico incluindo saúde mental, empoderamento socioeconômico das mulheres? 

Participação

Girão transmitiu aos participantes mais de 400 perguntas encaminhadas por meio do Portal e-Cidadania por cidadãos que estavam acompanhando a audiência remotamente. Entre os questionamentos, estava a preocupação em relação ao aumento do quadro de depressão entre jovens e adolescentes. 

De acordo com dados do DataSUS apresentados pelo assessor técnico do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Marcelo Kimati Dias, o Brasil registrou, de 2010 a 2019, um aumento de 81% da mortalidade de adolescentes por suicídio. A taxa passou de 3,5 mortes para 6,4 por 100 mil habitantes. Ainda segundo ele, há um aumento sustentado dessas mortes em menores de 14 anos, indicando cada vez mais a necessidade de uma política pública que considere a heterogeneidade e a complexidade desse fenômeno. 

— Quando a gente toma a ideia de política intersetorial, articulada, isso torna as políticas muito mais complexas, com a necessidade de que elas sejam feitas junto a outros ministérios. 

Na avaliação da senadora Damares Alves (Republicanos-DF), o Senado pode oferecer uma grande contribuição para a aplicação da lei. Ela sugeriu que a CAS crie um grupo de trabalho interno para auxiliar o Executivo Federal tanto na constituição desse plano intersetorial como na reativação do comitê, previsto na Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, para execução do sistema nacional, envolvendo estados e municípios, com vistas à prevenção da violência autoprovocada. 

— É um trabalho em que tem que ser considerada a transversalidade. O Ministério da Segurança Pública tem que estar aqui, porque tem gente nas redes sociais incitando nossos meninos a se automutilarem e a se suicidarem. Tem bandidos nessa história. Tem serial killer nessa história que nunca tocou numa criança, mas que está levando crianças a morte e nós vamos ter que enfrentar isso também trazendo o Ministério de Segurança para esse debate. A lei prevê que a notificação compulsória não é só com o Ministério da Saúde, a educação vai ter que vir, a escola vai ter que vir (…). Não se faz política pública sem medir, não se faz política pública sem avaliação. 

Os participantes lembraram ainda da importância de se cobrar a notificação compulsória, pelos estabelecimentos de saúde e pelas escolas, dos casos de violência autoprovocada. A medida está prevista na Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio. 

Também foi defendida a aprovação de uma lei que institucionalize a campanha Setembro Amarelo como forma de ampliar a conscientização sobre a saúde mental. 

— Quando você cria uma lei, a sociedade fala mais sobre o assunto e permite essa cadeia de auxílio e a incorporação de ações e apoios emocionais — defendeu a representante do Centro de Valorização da Vida (CVV), Leila Herédia.

O CVV desenvolve um trabalho voluntário de apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo gratuitamente e sob total sigilo as pessoas que querem conversar. O atendimento é oferecido 24 horas, por telefone (pelo número 188), e-mail e chat.

Agência Senado.

guazelli

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