Em pouco mais de um ano, cerca de 500 mil candidatos poderão participar de uma eleição municipal sob novas regras. No dia 14, a Câmara dos Deputados aprovou os dois projetos que compõem mudanças que ficaram conhecidas como minirreforma eleitoral.
Os projetos ainda precisam passar pelo Senado e ser sancionados até o dia 5 de outubro para entrarem em vigor para o pleito de 2024, uma velocidade que já foi vista às vésperas de eleições passadas. Dessa vez, no entanto, a projeção não é tão animadora para os defensores da reforma. O presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), garantiu que seus pares não farão uma avaliação apressada.
Várias alterações e propostas foram apreciadas na reta final de votação na Câmara e trazem impactos relevantes ao Código Eleitoral. Dentre elas estão a flexibilização da prestação de contas de campanhas e a punição a contraventores, mudanças de cotas femininas e negras e a proibição de candidaturas coletivas.
Juristas ouvidos pelo Brasil de Fato apontam avanços, como a antecipação do calendário eleitoral, e retrocessos em termos de transparência e participação de minorias. Algumas polêmicas demonstram que não houve o consenso esperado pelo relator da minirreforma, o deputado federal Rubens Pereira Júnior (PT-MA).
Uma delas diz respeito a mudanças na Lei da Ficha Limpa, que diminui o período em que políticos devem ficar afastados das disputas eleitorais. “Como sou advogado, vejo com bons olhos a alteração porque tinha algo desproporcional e não razoável em termos de prazo de inelegibilidade. Alguns casos chegavam a 15, 20 anos de inelegibilidade e o projeto está reduzindo tudo para 8 anos. Ficaria uma coisa uniformizada. Se você for ouvir um promotor de Justiça, ele vai achar que é absurdo, que deveriam ser 20 anos”, comenta o advogado Alexandre Luis Mendonça Rollo, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.
Outro tema divergente, mas que avançou, diz respeito às ‘sobras eleitorais’ no Legislativo, que podem beneficiar os maiores partidos. O texto prevê que apenas as siglas que alcançarem 100% do quociente podem disputar as cadeiras que sobrarem, em detrimento de candidatos mais votados, mas cujos partidos foram menos selecionados pelos eleitores.
A deputada gaúcha Fernanda Melchionna, do PSOL, fez críticas à medida durante a votação no plenário da Câmara. “O critério dos quocientes beneficia as máquinas. E para que essa pluralidade, essas liberdades democráticas, esses parlamentares que muitas vezes eu divirjo, mas que representam alguns segmentos para que pudessem estar aqui, as sobras foram fundamentais”, apontou, mencionando que vários dos seus colegas, incluindo alguns da oposição, não seriam eleitos por essa fórmula.
Retrocesso na participação de mulheres e minorias
Diversas organizações da sociedade civil, como o Pacto pela Democracia e a Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), apontam um recuo no processo de inclusão das mulheres na política. Segundo a proposta, a cota de 30% de candidaturas femininas passa a ser contabilizada por federação e não mais por partido.
“Isso significa uma redução. Se você conta partido a partido, garante uma representatividade maior, porque alguns partidos podem não cumprir os 30%, mas serem compensados por outro que tenha um pouco a mais”, pontua a advogada Laila Viana de Azevedo Melo, membro da Abradep. “As políticas afirmativas de representatividade são ferramentas de mitigação de danos sociais que já enfrentamos há muito tempo, como cotas de recurso e tempo de propaganda para candidaturas femininas e negras”.
“Para transparência, organização e consolidação de um voto consciente do eleitor, estamos tendo muito retrocesso, e para participação política também. Afinal de contas, os partidos vão poder eliminar a participação feminina em muitos municípios sem que isso seja penalizado”, acrescenta o advogado Arthur Mello, do Pacto pela Democracia.
Outro trecho criticado prevê brechas para o uso de verbas que atualmente são destinadas apenas a candidaturas femininas. Assim, despesas de campanha poderiam ser combinadas com as dos homens, desde que acompanhadas de mulheres e pessoas negras em publicidades.
Proposta criada pelo Novo e apresentada pelo Partido Liberal, a proibição de candidaturas coletivas também está no pacote. A regulamentação desse modelo, que atualmente é reconhecido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foi apresentada pelo relator, mas rejeitada pelos deputados.
A vedação é criticada pela esquerda, que emplacou diversas chapas nesse formato em eleições anteriores – o movimento começou a ganhar força em 2016 e elegeu os primeiros mandatos em 2018. O deputado Bohn Gass (PT-RS) pediu a palavra no plenário durante a votação para mostrar seu descontentamento.
“As experiências que têm candidaturas coletivas são em torno exatamente de pessoas que defendem o mesmo ideal. Como elas funcionam? É o registro de uma pessoa, que está listada, mas que tem em torno de si pessoas que ajudam inclusive para fazer a campanha. Eles devem ter o direito de se manifestar”, criticou.
Ajustes em regras e controle sobre campanhas
Houve divergências também sobre tópicos relacionados às normas de financiamento e prestação de contas das candidaturas. Uma delas diz respeito ao impedimento de descontos do fundo eleitoral ou partidário às siglas no segundo semestre eleitoral. Algo que impediria decisões como a de Alexandre de Moraes, presidente do TSE, de bloquear recursos do fundo do PL por má-fé, quando o partido pediu anulação parcial de votos das eleições de 2022.
“Há, por exemplo, a possibilidade de cassação de chapa para quem for pego na compra de votos. As alterações dos artigos 30 e 41A pode resultar em apenas uma multa de R$ 10 mil a R$ 150 mil para quem fizer a compra de voto. Tem a alteração do artigo 100, que fala que não vai precisar de mais de documento de subcontratação de empresa, o que permite fazer a farra dos panfleteiros. Isso também facilita a compra de votos”, afirma Mello.
Outras medidas são vistas como positivas, como a utilização do fundo partidário para custear despesas de viagem durante as campanhas e a proibição de repasses de campanha enquanto houver lacunas na prestação de contas. “É importante que haja alteração sobre despesas deste tipo. Afinal, o fundo eleitoral é para despesa eleitoral e a alimentação e hospedagem de candidato é uma despesa eleitoral. Então pelo projeto de lei fica autorizada a utilização”, elucida Rollo.
A modernização do financiamento de campanha também está no projeto, com a possibilidade de doações via Pix e vedação de cheques cruzados. “Ao contrário do que se diz, os Pix são rastreáveis. É possível, o Banco Central tem essa capacidade. Obviamente que nós vamos ter um número massivo de necessidade de rastreamento. Vai dar trabalho, mas acho que a Justiça Eleitoral tem se aprimorado nos últimos anos, vai sofrer sobrecarga, mas pode se adaptar, A gente precisa aderir a novos mecanismos, são coisas óbvias que precisam ser alteradas”, comenta Laila Melo.
No sentido de dar mais tempo de análise à Justiça Eleitoral, uma mudança traz a antecipação das convenções partidárias e dos registros de candidaturas. “O projeto antecipa em 15 dias as convenções e em praticamente 20 dias o prazo dos candidatos apresentarem candidatura. Importante para o que Superior Tribunal de Justiça tenha o mínimo de condição de julgar os registros até as datas das eleições. Não vai dar tempo de fazer isso, mas eu prefiro 15 dias a mais do que do jeito de hoje, que são 45 dias para julgar tudo, e a Justiça não julga. Poderia antecipar ainda mais”, opina Rollo.
A velocidade entre a elaboração da minirreforma e a sua tramitação também incomoda organizações da sociedade civil. A iniciativa do presidente da Câmara, Arthur Lira, de criar um grupo de trabalho no fim de agosto deu menos de duas semanas para que houvesse audiências públicas e discussões profundas sobre os projetos.
“Vemos com preocupação a normalização desse tipo de processo. Ainda mais quando estamos falando de uma mudança das regras do jogo, um ano antes da eleição, sem a participação da sociedade, sem um amplo debate. O resultado não poderia ser outro: o texto é lotado de equívocos, para dizer o mínimo, com coisas que vão contra a transparência do sistema eleitoral, contra a participação de mulheres e negros, então estamos bem preocupados com o teor desse texto e a forma como foi apresentado”, ressalta Arthur Mello.
Ele tem esperanças de que, uma vez no Senado, a minirreforma seja apreciada pela recém-criada Comissão de Defesa da Democracia, comandada por Liziane Gama (PSD-MA). “É uma comissão nova que precisa ser colocada à prova a partir da análise desse texto. Agora, vai surpreender a sociedade civil se isso também for tocado de forma célere, atropelada, sem participação, também no Senado”, alerta o representante do Pacto pela Democracia.
Reportagem da Brasil de Fato DF.
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